segunda-feira, 25 de maio de 2020

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto

O trecho mais lindo que já li na vida está no capítulo doze do livro "Venenos de Deus, Remédios do diabo", do escritor moçambicano Mia Couto, que transcrevo abaixo, porque acho que todo mundo merece ler uma coisa tão linda como essa!!

Fica a dica de leitura do livro que é belíssimo!!


Capítulo Doze 

"- De onde tu és? - perguntou Deolinda. 

- Sou da Guarda. 

Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa: 

- Tu és meu anjo-da-guarda. 

O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira. 

- Tu tens medo de fazer amor comigo? 

- Tenho – respondeu ele. 

- Por eu ser preta? 

- Tu não és preta. 

- Aqui, sou. 

- Não, não é por seres preta que eu tenho medo. 

- Tens medo que eu esteja doente... 

- Sei prevenir-me. 

- É porquê, então? 

- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti. 

Deolinda franziu o sombrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se à ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço. 

- Que olhar é meu nos olhos teus? 

Nessa noite se envolveram, mãos de oleiro salvando o outro de ter peso. Nessa noite, o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia. 

- Amar – disse ele - é estar sempre chegando." 

Mia Couto  
Venenos de Deus, Remédios do diabo - Pag. 105/106 







sábado, 23 de maio de 2020

Crônica da Casa Assassinada - Lúcio Cardoso

Esse período de isolamento social não tem sido fácil para nenhum de nós. A vontade que dá é de se jogar no sofá e só levantar quando tudo acabar, não é? Eu realmente tenho me sentido assim mas hoje decidi me levantar e fazer algo que eu amo: falar sobre livros! Como moro sozinha, decidi compartilhar aqui o assunto, pois acho que pode animar outras pessoas a ler e a conversar sobre a leitura. Vou começar com o livro que acabei essa semana. Crônica da Casa Assassinada é um romance de Lúcio Cardoso, um escritor brasileiro que me parece pouco conhecido do grande público. Descobri esse em um canal do youtube que fala sobre literatura e não me arrependi da leitura.
A história se passa em torno de uma família tradicional de Minas Gerais em decadência financeira e moral e cuja presença de Nina, uma carioca linda e ousada, vai abalar de forma irreversível. O livro é escrito a partir de trechos de conversas, cartas, confissões e assim a gente vai "montando o quadro geral". A escrito de Lúcio Cardoso é simplesmente linda, o ritmo que ele emprega ao livro é excelente. Fico me perguntado como nunca ouvi falar desse escritor brasileiro que foi a paixão de Clarice Lispector e que escreve de forma maravilhosa. Quantos outros escritores sensacionais devem estar perdidos por aí?
Vou terminar com um pequeno trecho do livro, confesso que foi difícil escolher um só, pois, como eu disse, a escrita dele é belíssima!



"Essa mulher não se deterá nunca, pela simples razão de que ela não sabe se deter; é um elemento desencadeado, uma força em ação, e decerto terminaria seus dias atada a uma fogueira se ainda vivêssemos nos dias sombrios da Inquisição" (pg. 240).

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Crônica


Conto de hoje na RevistaBlog Porandubarana é do escritor norteriograndense Christi Rocheteau.




#literaturanacional #novosescritores #contos #crônicas




terça-feira, 1 de outubro de 2019

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto



Conheci Mia Couto, o escritor moçambicano, há pouco tempo. Me apaixonei por seu estilo que me lembra algo de Gabo após ler sua coletânea a de contos Cada Homem é uma Raça, porém, ainda não encontrei nada mais lindo do que esse trecho do romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo.

aí, para quem quiser se deliciar e sonhar...


(...)

- De onde tu és? – perguntou Deolinda.

- Sou da Guarda.

Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa: - Tu és o meu anjo-da-guarda – O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava, e ela se encostou nele. O português viu suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. 

Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.

- Tens medo de fazer amor comigo?

- Tenho – respondeu ele.

- Por eu ser preta?

- Tu não és preta.

- Aqui, sou.

- Não, não é por seres preta que tenho medo.

- Tens medo que eu esteja doente?

- Sei prevenir-me.

- É porquê, então?

- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.

Deolinda franziu o sombrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.

- Que olhar é meu nos olhos teus?

Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite, o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.

- Amar – disse ele – é estar sempre chegando. Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?

Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: “eu sou o viajante do deserto que, no regresso diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.” Na poesia haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada.

(...)


Fernanda Rodrigues







quarta-feira, 24 de julho de 2019

Pablo Neruda

Pablo Neruda é, para mim, o melhor de todos os poetas e dentre seus sonetos maravilhosos, o Soneto XVII que integra o livro Cem Sonetos de Amor é o melhor. Para quem gosta de poesia e especialmente deste poeta (e para quem ainda não o conhece bem) há um filme chamado O Carteiro e o Poeta que vale muito a pena ser visto e para quem ainda não conhece essa coisa mais linda do mundo que é o Soneto XVII, aí esta:



Soneto XVII

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente, sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem tu és
tão perto que tua mãe sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.




Tradução de Carlos Nejar
L&PM Editores








sábado, 20 de julho de 2019

Sinais




"A voz do anjo sussurrou no meu ouvido;
Eu não duvido já escuto os teus sinais..."


As pernas cansadas doíam sob o peso do corpo frágil e o ventre inchado dificultava sua respiração, mas a criança se agitava com força dentro dela, impelindo-a a continuar. 

E ela continuou com seus passos lentos e doloridos apesar de quase não ter mais forças.

Desde que havia se dado conta de que uma nova vida crescia dentro dela, não mais dormia. Passava as madrugada perscrutando as horas sombrias até que o amanhecer a surpreendia ainda acordada e sem respostas.

Mas em meio à noite alta, quando ouvira os sinos da igreja soando ao longe, acreditou que aquele era o sinal pelo qual vinha aguardando, afinal, fora sob o campanário da antiga igreja que a promessa lhe havia sido feita.

Levantou-se em silêncio para que ninguém a ouvisse sair. Sabia que, apesar da surra de vara de marmelo que seu pai havia lhe infligido quando notara sua barriga crescendo, ele não permitiria que ela partisse daquele jeito.

Com cuidado para não fazer qualquer barulho, pegou a pequena trouxa escondida no fundo do pequeno baú onde guardava seus poucos pertences e que já havia sido preparada há muito tempo para aquele momento.

Levaria daquela vida apenas uma foto da mãe, a quem amava, e o terço que havia recebido no dia de sua primeira comunhão.

Sorrateira como um gato vadio e sem sequer olhar para trás, saiu em direção à noite quente. Por um breve momento sentiu medo e permaneceu na porta que dava para o quintal da casa buscando pela coragem que agora lhe faltava, enquanto observava a lua solitária que lá de cima esparramava sua grinalda de prata sobre o solo estéril do sertão.

Mesmo durante a madrugada o calor era intenso e sufocante. Uma brisa tímida vinda do sul amenizava um pouco seu sofrimento e movia as roupas brancas penduradas nos varais que pareciam dançar como amantes que celebram um reencontro há muito esperado.

Aquilo a fez se lembrar dos finais de tarde quando, depois de um longo dia de trabalho pesado, sentava-se nos degraus da varanda e se punha a imaginar a pele morena cujo toque a fizera estremecer antecipando o prazer que sentira uma única vez em sua vida e pelo qual passara a ansiar desde a noite em que o havia conhecido.

Na seresta aos pés da Igreja do Divino, seus olhos se cruzaram por sobre a fogueira que iluminava a festa em louvor ao Santo. Tímida, baixou a cabeça sentindo o rosto enrubescer.

Ele, sustentando aquele olhar que penetrava sua alma e desejava seu corpo, caminhou até ela e sem dizer palavra, segurou sua mão e beijou-a rosando os lábios levemente em sua pele.

Com destreza, puxou-a para junto de si e a abraçou com força até que juntos moveram-se numa dança lenta ao som dos violões e sob os fogos de artifício que explodiam nos céus intimidando as estrelas.

Quando, muito tempo depois, a música cessou, ela sentiu que o amava e que jamais o deixaria. Temendo que ele se fosse, pousou a cabeça em seu peito forte e musculoso e o cheiro inebriante que emanava dele enfeitiçou-a por completo.

Com um toque delicado que contrastava com suas mãos calejadas e queimadas pelo sol, ele prendeu um mecha do cabelo fino atrás da orelha delicada de menina e sussurrou ao pé do seu ouvido uma jura de amor.

Com sua voz de anjo, confessou que há muitas vidas corria o mundo a sua procura e que agora que a havia encontrado sua busca acabara e ele poderia, enfim, descansar em seus braços.

Ela acreditou naquelas palavras com seu corpo e sua alma e naquela noite ele a tomou para si e ela, em meio à dor e prazer, se entregou a ele.

Ao amanhecer, tomando-a mais uma vez em seus braços, ele lhe disse que tinha que partir, mas prometeu que voltaria para buscá-la quando seus sinais lhe fossem anunciados.

Ele se foi e ela chorou e, desde então, passou a viver por aquela promessa.

A criança agitou-se dentro dela quebrando o encantamento que aquela lembrança sempre lhe provocava. Era hora de deixar a casa simples feita de paredes de barro e telhado de sapé para trás e seguir seu caminho.

Com enorme dificuldade percorreu os poucos quilômetros de estrada de chão que separavam a propriedade rural onde vivia e o pequeno vilarejo.

Mais de uma vez precisou parar para descansar. Naqueles momentos sentia o suor frio e pegajoso escorrendo por seu rosto e acreditava ouvir o seu chamado.

Agradeceu ao santo de sua devoção quando avistou o pequeno aglomerado de casas que envolviam a igreja. E em seu estado, sequer percebeu a sombra negra que circulava a torre do campanário rasgando o céu.

A madrugada fugia quando chegou à praça da igreja. As pernas fraquejaram no momento em que, ao olhar para a torre, se deu conta de que não havia qualquer sino lá em cima. Sentiu-se atordoada, como se prestes a perder os sentidos.

Será que por força de tanto desejar, acabara imaginando o retinir do sino e, convencida de que aquele era o sinal, deixara sua vida e sua família para trás? No momento em que esse pensamento terminava de se formar em sua mente, a primeira onda de dor a invadiu fazendo-a sentir que o ventre rebentaria a qualquer momento.

A hora havia chegado e ela chorou de dor, medo e solidão.

Pressionou as pernas uma contra a outra tentando em vão impedir que a criança seguisse o curso natural, talvez tivesse tempo de voltar para casa ou de procurar ajuda entre os moradores da cidade, porém, a dor imensa vinha em ondas constantes e mais intensas, com intervalos cada vez menores.

Caminhou em direção às casas que circundavam a igreja em busca de socorro, porém, uma dor aguda e lancinante a cegou. Sentiu o líquido quente e viscoso escorrer por suas pernas e soube que não haveria muito tempo antes do bebê chegar.

Não queria que o filho morresse. Ela o amava, assim com amaria àquele que seria seu único homem para sempre. Decidiu, então, seguir para a igreja, crendo que ela e o filho estariam seguros naquele lugar sagrado.

Impulsionada pelo amor que nutria por aquela criança e com o pouco de forças que ainda lhe restavam, arrastou-se gemendo em direção as portas da igreja, mas não teve tempo de chegar ao seu destino.

Sob a sombra escura e alongada que se projetava do alto do campanário, deu à luz a um menino que deslizou para o mundo e não chorou.

O silêncio a fez tremer, contudo, ao puxá-lo para junto dos seios e o abraçar, sentiu que ele respirava. Com carinho, pousou uma das mãos sobre o peito tão pequeno que subia e descia impulsionado pela respiração e sentiu o coração que pulsava com força.

Amou-o completamente.

Acariciou o cabelo pastoso e beijou sua testa, mas, antes que pudesse lhe dar o peito para matar sua fome e completar aquela ligação mística que só pode existir entre uma mãe e seus filhos, a forma empoleirada no alto do campanário saltou em sua direção.

Aquele que fora seu amante e que havia feito nela aquela criança, surgiu como que anunciado pelos sinos invisíveis que ela ouvia novamente badalar. Sem compreender de onde vinha aquele som que entorpecia seus sentidos, em meio às lagrimas e contra a sua própria vontade, estendeu o bebê para o homem que o agarrou com um único braço.

Sem desviar os olhos do bebê que segurava em seu braço direito por um segundo sequer, agarrou o cordão umbilical com a mão esquerda e levou-o até os lábios e, rasgando-o com os dentes, separou mãe e filho.

A dor que sentiu em sua alma foi maior do que toda a dor que havia padecido em seu corpo, e ela chorou e implorou para que ele lhe devolvesse o menino, mas ele parecia não vê-la.

A mulher cada vez mais fraca, sangrava no chão sentindo-se apavorada diante daquele homem a quem havia se entregado sem medo e que agora lhe inspirava o mais profundo terror.

Temendo pelo filho, num último gesto de coragem, lançou-se sobre o homem, buscando tomar o bebê de suas mãos.

Só então ele voltou sua atenção para ela e com seu olhar ameaçador envolveu-a em uma teia invisível enquanto se aproximava. Tocou o rosto molhado pelas lágrimas e pelo suor e sorriu ao constatar como, apesar de tudo que havia passado, ela ainda lutava pelo filho e pelo pouco de vida que restava em seu corpo martirizado.

Como na noite em que a seduzira, mais uma vez prendeu atrás da orelha delicada uma mecha do cabelo que caia sobre seu rosto, porém, desta vez não houve juras de amor nem promessas vazias.

Fez aquilo apenas para deixar à mostra o pescoço moreno que envolveu com seus dedos longos enquanto salivava de prazer até sentir que aquela vida que servira tão facilmente a seus propósitos havia fenecido completamente e abandonou o corpo que caiu inerte no chão de pedras e que, mesmo após a morte, permaneceu com os olhos abertos contemplando o céu.

Com um assobio agudo, conjurou o enorme corcel negro que surgiu como um filho das trevas atendendo ao chamado de seu senhor.

O homem que segurava junto ao peito nu aquela criança gerada para herdar sua alma sombria quando a pele que ele habitava já não lhe servisse mais, montou o cavalo sem qualquer dificuldade e cavalgou para dentro daquela noite que jamais teria fim.



- Fernanda Rodrigues -





NOTA: Esse pequeno conto é obviamente inspirado na canção Anunciação, música que, desde sempre me despertou uma sensação de mistério. 

Mia Couto - Trecho


"História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, em todo tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens.

Agora, quando desembrulho minhas lembranças eu aprendo meus muitos idiomas. Nem assim me entendo. porque enquanto me descubro, eu mesmo me anoiteço, fosse haver coisas só visíveis em plena cegueira."


Trecho do conto "O apocalipse privado do tio Geguê"
Em Cada Homem é uma Raça, Mia Couto

sexta-feira, 19 de julho de 2019

A Morte em mim




Eu morri numa madrugada fria e úmida depois de um longo dia de trabalho nas lavanderias da condessa de d'Aumont. O assassino que se aproximou de mim pelas costas, rasgou minha garganta com sua faca pouco afiada sem que eu tivesse chances de me defender. 

Naquela noite, ele levou minhas poucas moedas e eu perdi minha vida, meus sonhos e esperanças. Lembro-me de que, antes que meu coração parasse de bater, vi o sorriso do meu filho. Aquele foi meu último pensamento e assim deixei a vida com lágrimas nos olhos.

Meu corpo enregelado foi encontrado ao amanhecer, após horas esquecido num beco escuro de Paris, por um garoto sujo que aproximou-se de mim e deu pequenas pancadas em meu ombro, como não me mexi, ele tocou meu pescoço com a ponta dos dedos e ao constatar a falta de pulsação deu sinal para que outros dois rapazes que o acompanhavam chegassem mais perto.

Quando estavam todos reunidos à minha volta, ele levantou meu vestido expondo meu corpo sem qualquer pudor e, como se ensinasse aos mais jovens a escolher uma boa novilha, explicou com muito contentamento que meu corpo renderia um bom dinheiro, pois, apesar do corte profundo em meu pescoço por onde meu sangue havia jorrado, eu era jovem e não tinha ferimentos graves, deformidades ou qualquer doença séria, então, os dois jovens, seguindo as ordens do líder do grupo, tomaram-me pelos pés e pelas mãos e me lançaram sobre uma carroça. 

Nem sequer fecharam meus olhos. 

Notei que junto a mim havia outros três corpos, um deles era de uma mulher muito velha que cheirava à doença e podridão, o outro era de uma criança ainda anjinho que parecia dormir e o terceiro era de um homem de meia idade sem ferimentos que permitissem descobrir a causa de sua morte.

A viagem foi longa e penosa e durante todo tempo eu me perguntava se a morte era apenas aquilo e onde estaria o limbo, o purgatório o paraíso e o inferno.

Depois de muito tempo sacolejando por uma estrada estreita, paramos em uma estalagem, um lugar pobre e feio muito distante da cidade e enquanto os dois rapazes ficaram para vigiar a mercadoria enquanto o terceiro entrou na taberna onde se ouvia o riso de homens bêbados e mulheres levianas.

Meus olhos estavam muito cansados, mas eu não conseguia fechá-los e meu único consolo era poder olhar as estrelas que começavam a surgir no céu. 

Estava tomada pela frieza da morte e não entendia porque minha alma ainda estava aprisionada à carne. Então me dei conta de que eu não seria enterrada, de que não me seriam concedidos os ritos fúnebres e de que minha alma não seria encomendada aos céus, talvez por isso meu espírito ainda estivesse ali, impedido de encontrar o caminho em direção ao descanso eterno que sempre me havia sido prometido. 

Angustiada por aquele pensamento, senti mãos que me tocavam. Um dos rapazes abriu os botões de meu blusão para deixar meus seios à mostra, enquanto o outro me observava com um sorriso torpe nos lábios, me senti envergonhada e exposta enquanto os dois apalpavam meu corpo e faziam piadas sujas.

Quis chorar e descobri que aos mortos não é dada essa benção.

Após viajarmos por toda a noite, chegamos a uma bonita propriedade rural, uma casa grande feita de pedras cinzentas e janelas altas. Não demorou a que o dono da casa surgisse. Pude vê-lo bem quando ele se aproximou para examinar meu corpo, era um homem de cerca de quarenta anos, cabelos grisalhos, boca bem-feita e olhos atentos. Pude notar que ele se agradou de mim, mas apesar disso reclamou do alto preço exigido pelo líder do grupo, então os dois iniciaram uma discussão que me pareceu ensaiada, como se ambos já soubessem qual seria o desfecho daquilo.

O mercador propôs a venda de nós quatro pelo preço de três, mas o homem não queria a velha que estava muito deteriorada, nem o bebê, pois bebês eram fáceis de encontrar. Ele queria apenas ao homem de meia idade e a mim. Severo, lembrou ao mercador que já tinha dito centenas de vezes que corpos velhos e decompostos não lhe interessavam, precisava de corpos frescos e jovens, não de carcaças imundas.

O mercador tentou convencê-lo de que com a chegada do verão a oferta cairia e o homem rebateu alegando que a nova estação traria suas próprias doenças garantindo que os corpos continuassem a chegar. Depois de muito discutirem, o homem aceitou ficar com três de nós. Não ficou com a velha alegando que aquele corpo em adiantado estado de putrefação e cujo odor impregnava tudo não lhe teria serventia alguma.

O sol já estava no meio do céu quando meu corpo foi carregado pelos rapazes e deixado numa mesa fria num quarto iluminado por archotes, não demorou para que o homem que me comprou viesse se ocupar de mim e me surpreendi ao perceber que sua ajudante era uma mulher jovem.

Juntos e em sintonia como se acostumados com aquele trabalho, eles despiram meu corpo, me emergiram numa banheira de águas mornas que cheirava a ervas medicinais, me esfregaram até que toda a sujeira saísse, lavaram e trançaram meus cabelos, me secaram com uma toalha macia e empastaram meu corpo com um unguento de cheiro forte.

Nunca em vida eu havia me banhado daquele jeito.

Terminado o trabalho, meu corpo foi deixado sobre a mesa, as luzes foram apagadas e eu mergulhei numa escuridão consciente tão densa e penetrante que podia senti-la tocando meus ossos. Sempre temi o escuro e a plena consciência de mim mesma que a ausência de luz proporcionava e, naquelas horas de profundo silêncio, fui assombrada pelos fantasmas dos sonhos desfeitos, pela sombra de esperanças vãs e pela lembrança daquilo que nunca aconteceria.

Eu tentei gritar implorando aos céus que tivessem misericórdia da minha alma e me levassem dali, mas nenhum som saia de minha boca.

Era desesperador estar ali, consciente da vida à minha volta e sem forças para me livrar de mim mesma, sem saber como deixar meu corpo e voar em direção à eternidade, sem sequer ter a certeza de que havia realmente um céu esperando por mim.

Mesmo morta eu sentia frio e me perguntei se aquilo era o purgatório sobre o qual eu ouvia falar nas missas de domingo.

Sem respostas e em meio àquele tormento, a manhã me surpreender. Logo a sala estava repleta de rostos jovens de olhos curiosos, todos homens bem vestidos – com exceção de uma única mulher, a jovem que havia ajudado a cuidar do meu corpo na noite anterior -, tinham papel e lápis nas mãos e me olhavam com interesse e até com certa reverência.

O homem que me comprou foi recebido de forma efusiva, parecia contar com a admiração daqueles meninos que se sentiam homens e que o ouviam com respeito e atenção enquanto ele apontava para mim e explicava sobre o funcionamento do corpo humano, até que, para meu completo pavor, ele aproximou-se de mim e sob o olhar de sua plateia rasgou meu peito com algo que parecia uma serra, em seguida a jovem foi convidada a se aproximar e a retirar o meu coração, o que ela com firmeza total e perícia para deslumbre de todos que assistiam àquela cena bizarra.

Diferente de quando morri, não senti dor, mas senti cada pedaço do meu corpo sendo arrancado de mim e talvez tenha sido pior do que ser amputada em vida, pois eu não podia gritar.

Após de ter meu corpo totalmente esvaziado, meu dorso oco foi lavado, empapado com um líquido de cheiro ruim e costurado, meus órgãos foram expostos em potes de vidro organizados em uma prateleira.

Não sei há quantos tempo isso tudo aconteceu, sei apenas que desde então meus olhos continuam abertos, porém, nunca mais pude ver as estrelas no céu, já não consigo sequer ver o sorriso de meu filho em minhas lembranças e a única coisa que vejo através da barreira de vidro do recipiente que me guarda é uma sala muito limpa e clara.

Em alguns momentos, alguém se aproxima, para à minha frente e me encara, olha no fundo dos meus olhos e eu tenho a estranha sensação de que essa pessoa pode sentir que eu ainda estou aqui, mas então ela se vai e eu permaneço sozinha, presa em meu corpo sem vida, consciente de que fui condenada a ser tratada como um objeto, como se nunca tivesse vivido, sem esperança, sem fé ou certezas e sem saber por quanto tempo irá durar o meu tormento.



- Fernanda Rodrigues -