segunda-feira, 25 de maio de 2020

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto

O trecho mais lindo que já li na vida está no capítulo doze do livro "Venenos de Deus, Remédios do diabo", do escritor moçambicano Mia Couto, que transcrevo abaixo, porque acho que todo mundo merece ler uma coisa tão linda como essa!!

Fica a dica de leitura do livro que é belíssimo!!


Capítulo Doze 

"- De onde tu és? - perguntou Deolinda. 

- Sou da Guarda. 

Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa: 

- Tu és meu anjo-da-guarda. 

O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira. 

- Tu tens medo de fazer amor comigo? 

- Tenho – respondeu ele. 

- Por eu ser preta? 

- Tu não és preta. 

- Aqui, sou. 

- Não, não é por seres preta que eu tenho medo. 

- Tens medo que eu esteja doente... 

- Sei prevenir-me. 

- É porquê, então? 

- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti. 

Deolinda franziu o sombrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se à ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço. 

- Que olhar é meu nos olhos teus? 

Nessa noite se envolveram, mãos de oleiro salvando o outro de ter peso. Nessa noite, o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia. 

- Amar – disse ele - é estar sempre chegando." 

Mia Couto  
Venenos de Deus, Remédios do diabo - Pag. 105/106 







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