Conheci Mia Couto, o escritor moçambicano, há pouco tempo. Me apaixonei por seu estilo que me lembra algo de Gabo após ler sua coletânea a de contos Cada Homem é uma Raça, porém, ainda não encontrei nada mais lindo do que esse trecho do romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo.
Tá aí, para quem quiser se deliciar e sonhar...
(...)
- De onde tu és? – perguntou
Deolinda.
- Sou da Guarda.
Ingênua malícia no olhar, ela
sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa: - Tu és o meu anjo-da-guarda – O riso dela
ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava, e
ela se encostou nele. O português viu suas defesas desmoronarem. Os braços dele
envolveram-na, a medo.
Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que
parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de
repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor
desalojava a cidade inteira.
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho – respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
- Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que
tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente?
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar.
Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sombrolho.
Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais
regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de
oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite, o corpo de um foi lençol do
outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E
quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez
ao vento. E mais nenhum destino havia.
- Amar – disse ele – é estar
sempre chegando. Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português
sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do
encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse
já chegado?
Lembrou os versos que ele próprio
rabiscara na ausência de Deolinda: “eu sou o viajante do deserto que, no
regresso diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu
sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele
me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.” Na poesia haveria oásis e
desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico
estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada.
Fernanda Rodrigues
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