sexta-feira, 26 de julho de 2019

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto



Conheci Mia Couto, o escritor moçambicano, há pouco tempo. Me apaixonei por seu estilo que me lembra algo de Gabo após ler sua coletânea a de contos Cada Homem é uma Raça, porém, ainda não encontrei nada mais lindo do que esse trecho do romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo.

aí, para quem quiser se deliciar e sonhar...


(...)

- De onde tu és? – perguntou Deolinda.

- Sou da Guarda.

Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidónio Rosa: - Tu és o meu anjo-da-guarda – O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava, e ela se encostou nele. O português viu suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. 

Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.

- Tens medo de fazer amor comigo?

- Tenho – respondeu ele.

- Por eu ser preta?

- Tu não és preta.

- Aqui, sou.

- Não, não é por seres preta que tenho medo.

- Tens medo que eu esteja doente?

- Sei prevenir-me.

- É porquê, então?

- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.

Deolinda franziu o sombrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.

- Que olhar é meu nos olhos teus?

Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite, o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.

- Amar – disse ele – é estar sempre chegando. Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias do encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?

Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: “eu sou o viajante do deserto que, no regresso diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.” Na poesia haveria oásis e desertos. Mas, em Vila Cacimba, havia apenas uma praça onde um médico estrangeiro se banhava nas lembranças de sua amada.

(...)


Fernanda Rodrigues







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