sábado, 20 de julho de 2019

Sinais




"A voz do anjo sussurrou no meu ouvido;
Eu não duvido já escuto os teus sinais..."


As pernas cansadas doíam sob o peso do corpo frágil e o ventre inchado dificultava sua respiração, mas a criança se agitava com força dentro dela, impelindo-a a continuar. 

E ela continuou com seus passos lentos e doloridos apesar de quase não ter mais forças.

Desde que havia se dado conta de que uma nova vida crescia dentro dela, não mais dormia. Passava as madrugada perscrutando as horas sombrias até que o amanhecer a surpreendia ainda acordada e sem respostas.

Mas em meio à noite alta, quando ouvira os sinos da igreja soando ao longe, acreditou que aquele era o sinal pelo qual vinha aguardando, afinal, fora sob o campanário da antiga igreja que a promessa lhe havia sido feita.

Levantou-se em silêncio para que ninguém a ouvisse sair. Sabia que, apesar da surra de vara de marmelo que seu pai havia lhe infligido quando notara sua barriga crescendo, ele não permitiria que ela partisse daquele jeito.

Com cuidado para não fazer qualquer barulho, pegou a pequena trouxa escondida no fundo do pequeno baú onde guardava seus poucos pertences e que já havia sido preparada há muito tempo para aquele momento.

Levaria daquela vida apenas uma foto da mãe, a quem amava, e o terço que havia recebido no dia de sua primeira comunhão.

Sorrateira como um gato vadio e sem sequer olhar para trás, saiu em direção à noite quente. Por um breve momento sentiu medo e permaneceu na porta que dava para o quintal da casa buscando pela coragem que agora lhe faltava, enquanto observava a lua solitária que lá de cima esparramava sua grinalda de prata sobre o solo estéril do sertão.

Mesmo durante a madrugada o calor era intenso e sufocante. Uma brisa tímida vinda do sul amenizava um pouco seu sofrimento e movia as roupas brancas penduradas nos varais que pareciam dançar como amantes que celebram um reencontro há muito esperado.

Aquilo a fez se lembrar dos finais de tarde quando, depois de um longo dia de trabalho pesado, sentava-se nos degraus da varanda e se punha a imaginar a pele morena cujo toque a fizera estremecer antecipando o prazer que sentira uma única vez em sua vida e pelo qual passara a ansiar desde a noite em que o havia conhecido.

Na seresta aos pés da Igreja do Divino, seus olhos se cruzaram por sobre a fogueira que iluminava a festa em louvor ao Santo. Tímida, baixou a cabeça sentindo o rosto enrubescer.

Ele, sustentando aquele olhar que penetrava sua alma e desejava seu corpo, caminhou até ela e sem dizer palavra, segurou sua mão e beijou-a rosando os lábios levemente em sua pele.

Com destreza, puxou-a para junto de si e a abraçou com força até que juntos moveram-se numa dança lenta ao som dos violões e sob os fogos de artifício que explodiam nos céus intimidando as estrelas.

Quando, muito tempo depois, a música cessou, ela sentiu que o amava e que jamais o deixaria. Temendo que ele se fosse, pousou a cabeça em seu peito forte e musculoso e o cheiro inebriante que emanava dele enfeitiçou-a por completo.

Com um toque delicado que contrastava com suas mãos calejadas e queimadas pelo sol, ele prendeu um mecha do cabelo fino atrás da orelha delicada de menina e sussurrou ao pé do seu ouvido uma jura de amor.

Com sua voz de anjo, confessou que há muitas vidas corria o mundo a sua procura e que agora que a havia encontrado sua busca acabara e ele poderia, enfim, descansar em seus braços.

Ela acreditou naquelas palavras com seu corpo e sua alma e naquela noite ele a tomou para si e ela, em meio à dor e prazer, se entregou a ele.

Ao amanhecer, tomando-a mais uma vez em seus braços, ele lhe disse que tinha que partir, mas prometeu que voltaria para buscá-la quando seus sinais lhe fossem anunciados.

Ele se foi e ela chorou e, desde então, passou a viver por aquela promessa.

A criança agitou-se dentro dela quebrando o encantamento que aquela lembrança sempre lhe provocava. Era hora de deixar a casa simples feita de paredes de barro e telhado de sapé para trás e seguir seu caminho.

Com enorme dificuldade percorreu os poucos quilômetros de estrada de chão que separavam a propriedade rural onde vivia e o pequeno vilarejo.

Mais de uma vez precisou parar para descansar. Naqueles momentos sentia o suor frio e pegajoso escorrendo por seu rosto e acreditava ouvir o seu chamado.

Agradeceu ao santo de sua devoção quando avistou o pequeno aglomerado de casas que envolviam a igreja. E em seu estado, sequer percebeu a sombra negra que circulava a torre do campanário rasgando o céu.

A madrugada fugia quando chegou à praça da igreja. As pernas fraquejaram no momento em que, ao olhar para a torre, se deu conta de que não havia qualquer sino lá em cima. Sentiu-se atordoada, como se prestes a perder os sentidos.

Será que por força de tanto desejar, acabara imaginando o retinir do sino e, convencida de que aquele era o sinal, deixara sua vida e sua família para trás? No momento em que esse pensamento terminava de se formar em sua mente, a primeira onda de dor a invadiu fazendo-a sentir que o ventre rebentaria a qualquer momento.

A hora havia chegado e ela chorou de dor, medo e solidão.

Pressionou as pernas uma contra a outra tentando em vão impedir que a criança seguisse o curso natural, talvez tivesse tempo de voltar para casa ou de procurar ajuda entre os moradores da cidade, porém, a dor imensa vinha em ondas constantes e mais intensas, com intervalos cada vez menores.

Caminhou em direção às casas que circundavam a igreja em busca de socorro, porém, uma dor aguda e lancinante a cegou. Sentiu o líquido quente e viscoso escorrer por suas pernas e soube que não haveria muito tempo antes do bebê chegar.

Não queria que o filho morresse. Ela o amava, assim com amaria àquele que seria seu único homem para sempre. Decidiu, então, seguir para a igreja, crendo que ela e o filho estariam seguros naquele lugar sagrado.

Impulsionada pelo amor que nutria por aquela criança e com o pouco de forças que ainda lhe restavam, arrastou-se gemendo em direção as portas da igreja, mas não teve tempo de chegar ao seu destino.

Sob a sombra escura e alongada que se projetava do alto do campanário, deu à luz a um menino que deslizou para o mundo e não chorou.

O silêncio a fez tremer, contudo, ao puxá-lo para junto dos seios e o abraçar, sentiu que ele respirava. Com carinho, pousou uma das mãos sobre o peito tão pequeno que subia e descia impulsionado pela respiração e sentiu o coração que pulsava com força.

Amou-o completamente.

Acariciou o cabelo pastoso e beijou sua testa, mas, antes que pudesse lhe dar o peito para matar sua fome e completar aquela ligação mística que só pode existir entre uma mãe e seus filhos, a forma empoleirada no alto do campanário saltou em sua direção.

Aquele que fora seu amante e que havia feito nela aquela criança, surgiu como que anunciado pelos sinos invisíveis que ela ouvia novamente badalar. Sem compreender de onde vinha aquele som que entorpecia seus sentidos, em meio às lagrimas e contra a sua própria vontade, estendeu o bebê para o homem que o agarrou com um único braço.

Sem desviar os olhos do bebê que segurava em seu braço direito por um segundo sequer, agarrou o cordão umbilical com a mão esquerda e levou-o até os lábios e, rasgando-o com os dentes, separou mãe e filho.

A dor que sentiu em sua alma foi maior do que toda a dor que havia padecido em seu corpo, e ela chorou e implorou para que ele lhe devolvesse o menino, mas ele parecia não vê-la.

A mulher cada vez mais fraca, sangrava no chão sentindo-se apavorada diante daquele homem a quem havia se entregado sem medo e que agora lhe inspirava o mais profundo terror.

Temendo pelo filho, num último gesto de coragem, lançou-se sobre o homem, buscando tomar o bebê de suas mãos.

Só então ele voltou sua atenção para ela e com seu olhar ameaçador envolveu-a em uma teia invisível enquanto se aproximava. Tocou o rosto molhado pelas lágrimas e pelo suor e sorriu ao constatar como, apesar de tudo que havia passado, ela ainda lutava pelo filho e pelo pouco de vida que restava em seu corpo martirizado.

Como na noite em que a seduzira, mais uma vez prendeu atrás da orelha delicada uma mecha do cabelo que caia sobre seu rosto, porém, desta vez não houve juras de amor nem promessas vazias.

Fez aquilo apenas para deixar à mostra o pescoço moreno que envolveu com seus dedos longos enquanto salivava de prazer até sentir que aquela vida que servira tão facilmente a seus propósitos havia fenecido completamente e abandonou o corpo que caiu inerte no chão de pedras e que, mesmo após a morte, permaneceu com os olhos abertos contemplando o céu.

Com um assobio agudo, conjurou o enorme corcel negro que surgiu como um filho das trevas atendendo ao chamado de seu senhor.

O homem que segurava junto ao peito nu aquela criança gerada para herdar sua alma sombria quando a pele que ele habitava já não lhe servisse mais, montou o cavalo sem qualquer dificuldade e cavalgou para dentro daquela noite que jamais teria fim.



- Fernanda Rodrigues -





NOTA: Esse pequeno conto é obviamente inspirado na canção Anunciação, música que, desde sempre me despertou uma sensação de mistério. 

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